O tesouro escondido no lixo eletrônico

Todos os anos, toneladas de dispositivos eletrônicos cruzam a linha tênue entre a utilidade e o esquecimento, tornando-se um resíduo que raramente encontra uma segunda chance. Mas, longe de ser uma sucata inútil, esse resíduo tecnológico possui um potencial econômico, ambiental e social que a economia circular está começando a redescobrir com interesse renovado. É WEEE: Resíduos de Equipamentos Elétricos e Eletrônicos, uma mina urbana que o mundo está apenas começando a explorar com a seriedade que merece.

“O desperdício do futuro está no presente”

Por: Gabriel E. Levy B.

Nas últimas duas décadas, a humanidade consolidou um padrão de consumo que transformou os dispositivos eletrônicos em extensões da vida cotidiana.

De smartphones a geladeiras, o uso massivo de eletrodomésticos trouxe consigo uma consequência lógica: a geração de lixo eletrônico ou REEE, como a Diretiva Europeia 2012/19/UE os chama.

A categoria WEEE engloba qualquer dispositivo que funcione com energia elétrica e que tenha sido descartado pelo seu usuário final, seja por obsolescência técnica ou desuso. A lista é vasta: computadores, televisores, impressoras, brinquedos eletrônicos, micro-ondas, roteadores, secadores de cabelo e uma série de outros produtos.

Sua característica comum é sua complexidade: são feitos de vários materiais, como plásticos, metais preciosos (ouro, prata, paládio), cobre, lítio, cádmio, entre outros.

Ao contrário de outros tipos de resíduos, os REEE requerem tratamento específico devido ao seu potencial poluente e à sua reutilização.

Eles são altamente perigosos se não forem gerenciados adequadamente, mas também incrivelmente valiosos se recuperados com eficiência. Em seu livro Garbage and Value, a socióloga Gay Hawkins explica como o desperdício também é um reflexo da cultura de consumo, mas também pode representar uma forma de reinventar a sustentabilidade a partir da economia circular.

Desde 2010, os volumes de REEE dispararam em todo o mundo. De acordo com o Global E-Waste Monitor 2024, a humanidade gerou 62 milhões de toneladas de lixo eletrônico somente em 2022, um número que deve aumentar para 82 milhões até 2030 se as tendências atuais não forem revertidas.

“Extrair sem cavar: a nova mineração urbana”

No coração da economia circular, os REEE ocupam um lugar estratégico devido ao seu potencial para reduzir a extração de matérias-primas virgens e reduzir o impacto ambiental dos processos industriais. Este ramo da economia está comprometido com o redesenho do ciclo de vida dos produtos, propondo que o desperdício não é o fim, mas o início de novos processos produtivos.

Os REEE, contendo metais preciosos e componentes de alto valor, tornaram-se o epicentro do que alguns economistas chamam de mineração urbana. A ideia é simples: recuperar de nossos resíduos os materiais que antes eram obtidos a um alto custo ecológico das minas tradicionais. Por exemplo, de acordo com dados da Universidade das Nações Unidas, uma tonelada de placas-mãe pode conter mais ouro do que uma tonelada de minério extraído de uma mina convencional.

Mas o valor dos REEE não é apenas simbólico ou ambiental. Também é econômico. De acordo com estimativas do Global E-Waste Monitor 2024, o valor total dos materiais contidos nos REEE gerados em 2022 ultrapassou 91.000 milhões de dólares, dos quais apenas 17,4% foram efetivamente reciclados. O resto foi simplesmente perdido, enterrado, incinerado ou mal administrado.

Esse descompasso entre o potencial de recuperação e a realidade operacional reflete uma oportunidade e um aviso. Como aponta o economista Walter R. Stahel, pioneiro do conceito de economia circular, “a chave não é produzir mais, mas preservar o valor do que é produzido pelo maior tempo possível”.

“Tecnologia obsoleta, problema persistente”

Apesar do crescimento do interesse global na reciclagem de eletrônicos, a gestão de REEE continua a enfrentar obstáculos estruturais. Um dos principais é a informalidade do setor. Em muitos países, especialmente no sul global, a reciclagem de REEE ocorre em condições precárias, com trabalhadores expostos a contaminantes sem proteção adequada e sem acesso a tecnologias modernas de reciclagem.

Além disso, os dispositivos eletrônicos são projetados, em sua maioria, sem pensar em sua desmontagem ou reutilização. A chamada obsolescência planejada – uma estratégia de negócios que reduz intencionalmente a vida útil dos produtos – impede a reutilização eficiente de componentes, forçando os consumidores a descartar aparelhos que ainda poderiam funcionar se reparados ou atualizados.

O problema é agravado pela falta de infraestrutura especializada. A reciclagem de REEE requer estações de tratamento avançadas, know-how e legislação adaptada. Sem esses elementos, a reciclagem é relegada a práticas rudimentares ou diretamente à exportação ilegal de resíduos para países com regulamentações frouxas.

O custo ambiental também é alto. Muitos REEE contêm materiais tóxicos, como mercúrio, chumbo ou retardadores de chama bromados. Quando esses resíduos são gerenciados de forma inadequada, poluem o solo, a água e o ar, afetando a saúde humana e os ecossistemas. Estudos da OMS mostraram como o manuseio inseguro de REEE pode afetar o desenvolvimento neurológico das crianças em comunidades próximas a lixeiras eletrônicas.

“A reciclagem como negócio: luzes e sombras”

Apesar dos desafios, há casos que mostram como os REEE podem ser transformados em uma oportunidade econômica. Na Europa, países como a Alemanha e a Suécia desenvolveram sistemas integrados de gestão de REEE que permitem a recuperação de até 85% dos materiais recicláveis. Essas políticas combinam incentivos fiscais, regulamentações rígidas e campanhas de conscientização cidadã.

Na América Latina, o Uruguai e o Chile avançaram nas leis que responsabilizam os produtores por seus aparelhos em fim de vida, sob o princípio da responsabilidade estendida do produtor. Essas leis buscam fazer com que as empresas projetem produtos mais fáceis de reciclar e financiem sua recuperação.

No setor privado, empresas como a ERI (Electronic Recyclers International), nos Estados Unidos, e a Umicore, na Bélgica, lideram modelos de reciclagem eletrônica com padrões ambientais e sociais exigentes. A Umicore, por exemplo, recupera metais preciosos de dispositivos eletrônicos com uma eficiência que supera muitas minas tradicionais e tem um faturamento de mais de 3.000 milhões de euros por ano, em grande parte graças a essa atividade.

Mesmo startups na África, como a Ecopost no Quênia ou  a Enviroserve em Ruanda, estão desenvolvendo soluções inovadoras para transformar lixo eletrônico em materiais reutilizáveis e empregos decentes.

Em conclusão, os REEE representam um paradoxo do nosso tempo: lixo com valor, problema com solução, desperdício com futuro. Inseri-los em uma lógica de economia circular não é apenas desejável, mas urgente. Em vez de continuar a extrair do subsolo, podemos começar a extrair de nossos resíduos. Mas para que isso aconteça, precisamos de regulamentação, investimento e uma cidadania consciente de que, muitas vezes, o verdadeiro tesouro está onde menos esperamos: no que não usamos mais.

Referências:

  • Hawkins, G. (2006). A ética do desperdício: como nos relacionamos com o lixo. Rowman & Littlefield.
  • Stahel, W. R. (2019). A economia circular: um guia do usuário.
  • Monitor Global de Lixo Eletrônico 2024. Instituto das Nações Unidas para Treinamento e Pesquisa (UNITAR), União Internacional de Telecomunicações (UIT), Associação Internacional de Resíduos Sólidos (ISWA).
  • Organização Mundial da Saúde (OMS), relatórios de saúde e lixo eletrônico.
  • Comissão Europeia, “Diretiva 2012/19/UE sobre resíduos de equipamentos elétricos e eletrônicos (REEE)”.
  • Relatório Anual da Umicore 2023.

 

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